
      (Extraído do livro: SILVEIRA, José de Deus Luongo da. As várias faces do Direito: uma crítica ao discurso jurídico tradicional. Londrina, Paraná: Universidade Estadual de Londrina, 2009).    
   O  problema do significado da vida e do mundo não se apresenta à  consciência como estruturas soltas e, sim, inseridas dentro de um  contexto relacional[1] que se articula para a formação do universo  interior e exterior no continuum das relações de tempo e espaço. A  construção dessas realidades significativas não é exatamente a tradução  do que está aí, presente nas coisas, mas é aquilo que para cada um detém  determinado sentido. Assim, as realidades (ens realis, ens rationis)  possuem atualidade (temporalidade para a consciência) mediante o  processo seletivo da ação intencional, gerando adaptação ou alienação.
           Os signos e valores individuais ou sociais dão sentido à vida das  pessoas e se constituem num corpo de verdades que determinam o seu agir,  a sua postura frente ao mundo. Não podemos viver como homens sem  raciocinar, e a verdade de cada um induz a uma visão de mundo[2]. São  lentes, pelas quais filtramos toda a compreensão da realidade. O próprio  pensamento de identidade pessoal nada mais é do que uma síntese  dinâmica que agrega os diferentes aspectos mentais, formando a  consciência do eu, como uma unidade própria que se projeta na dimensão  espácio-temporal. 
          Em termos gerais, há diferentes modelos de subjetividade: o conceito de  identidade pessoal como o resultado de todas as experiências passadas; a  consciência moral calcada em juízos de valores; o sujeito  epistemológico responsável pela formação das estruturas cognitivas e a  dimensão social, manifesta pela consciência política. Esses modelos se  articulam formando um núcleo geral de conceitos que se intercomplementam  num todo harmônico e pleno de significado. Quando isso acontece, se  estabelece um elo de coerência entre as várias percepções da realidade e  o eu realiza uma síntese dinâmica e satisfatória. Quando o sujeito  deixa de realizar essa integração, surgem as contradições internas, como  o resultado de uma visão fragmentada do mundo. O papel do sujeito nessa  re/construção da realidade vai determinar a interação mental e os  diferentes graus de adaptação social: “cooperação, competição, conflito,  acomodação e assimilação[3]”. O perigo reside na cristalização de  certas atitudes, na formação de estereótipos, isto é, uma conduta  calcada em reproduções falsas, “... idéias ou imagens não logicamente  fundamentadas[4]”. Via de regra, essas representações mentais são  responsáveis por atitudes de cunho fundamentalista que geram  exclusivismos no campo da religião, da política, do direito etc.
          É impossível dizer quão longe o homem pode levar as suas próprias  convicções. No testemunho da história, muitos mataram e morreram pelo  que acreditavam serem verdades. Nietzsche, no entanto, rompe com a idéia  de se imolar pela verdade, afirmando: “Morrer pela verdade. - Não nos  deixaríamos queimar por nossas opiniões: não estamos tão seguros delas.  Mas, talvez, por podermos ter nossas opiniões e podermos mudá-las[5]”. 
         Com a radicalização de suas idéias, o homem torna-se escravo do seu  próprio discurso e dele se convence, tão sinceramente, que é capaz de  dedicar uma vida inteira à consecução de suas idéias. A compreensão  maniqueísta de dividir as coisas entre verdadeiro/falso ainda faz parte  do cotidiano das pessoas, cria motivações, projetos de vida e uma  decodificação de toda a realidade percebida. São juízos de valores que  estão presentes nas mais diferentes manifestações da existência humana.
        O homem está preso no labirinto de suas estruturas conceituais e nessa  construção ideológica investe a sua própria felicidade. Todo o processo  de criação de estruturas conceituais que refletem a realidade dos  valores e interesses, como a finalidade da existência, conduta legal  etc., existe, porque o homem é um ser que produz significações. Segundo  Heidegger: 
“Somente  quando se encontrou a palavra para a coisa, é esta uma coisa; somente  então é, uma vez que a palavra é o que proporciona o ser à coisa (...)  Não falamos sobre aquilo que vemos, mas sim o contrário; vemos o que se  fala sobre as coisas[6]”.
Também  Voloshinov chega a afirmar que “sem signo não há ideologia[7]” e toda a  ideologia é uma visão parcial da humanidade. Cria-se, assim, o que os  lingüistas chamam de campos de sentido porque traduzem a idéia de  consciência individual, social e histórica. São referências que mostram  que 
“Pessoas  em todos os lugares continuam a inventar maneiras significativas de  viver tomando a cultura familiar como base, isto é, a língua, a  religião, os estilos de interação social, a comida, e assim por  diante[8]”.
        Essas realidades formam o pano de fundo dos pensamentos e se constituem  numa prisão sígnica[9]. O homem, sendo um ser de linguagem, não tem  saída, está preso no mundo dos signos e também é um signo, porque produz  relações de significação. A consciência de si mesmo passa a ser a  internalização de significados ou, mais adequadamente, um  inter-relacionamento contínuo de significados. Há significados de  passado, apreendidos; significados em apreensão e passíveis de  apreensão, o que é expresso na voz de Alberto Caeiro (pseudônimo de  Fernando Pessoa) como: “tristes de nós que trazemos a alma  vestida!”[10].
        Cada ser humano possui a sua própria visão de mundo e esse referencial é  tão importante que realiza a integração das várias funções do eu -  produzindo um universo de significações. A perda desse quadro de  referências corresponde à perda da auto-identidade, à perda da dimensão  que o eu tem desses signos e de si mesmo, enquanto um ser para um  processo dinâmico de recriação.
          O referencial que caracteriza o ser de linguagem é tão importante  quanto as demais manifestações da vida racional, ele traduz o mundo e  aprende mediante uma relação sincrônica e de dependência entre as  estruturas conceituais e os novos aprendizados, os quais percorrem um  caminho determinado, de reafirmação ou negação dos pressupostos já  existentes. Se estamos seguros do lugar que ocupamos no contexto onde  estamos inseridos, mergulhando no passado, trazemos à tela da memória a  nossa própria história. Isto só é possível, porque de alguma forma se dá  o processo de revelação e verificação do significado da nossa  experiência pessoal. E essas experiências comuns de um lado aprisionam a  realidade em relações sígnicas e de outro expressam a dimensão de  transcendência, de processo de reconstrução das idéias. É a experiência  de estar incluso, literalmente, numa relação ontológica, “idéias que não  são auto-representações mas signos daquilo que é objetivamente outro  que não a idéia no seu ser como representação privada[11]”. 
       No des/modelar para modelar de novo, mesmo que o homem migre para um  novo paradigma, libertar-se-á de uma estrutura-modelo para se tornar  cativo de outra. Não há saída, não há forma de romper com o passado sem  se abrigar em outras servidões. As nossas idéias nos definem, nos  transformam e a luta pelo novo, pela mudança, é continuidade enquanto  somos capturados em novos vínculos. Contudo, se é impossível a  existência humana sem esse suporte, tal não pode ser absolutizado com a  promoção da cultura da intolerância, a ponto de se tornar difícil a  convivência com outras percepções da realidade. Na sociedade  pós-moderna, a cultura da intolerância está assumindo proporções  perigosas; o divergente/diferente não só não é aceito, como se cria uma  série de obstáculos à sua existência no convívio social. 
          As próprias características da cultura ocidental, em alguns casos,  favorecem certos exclusivismos, na medida em que o homem ocidental é  preparado desde criança para encontrar uma única resposta certa  (verdadeira) para tudo, o que na realidade, parece não existir.  Privilegia-se um referencial teórico-prático, um padrão de racionalidade  técnica, conduzindo à cultura hegemônica e às culturas subalternas. 
          O medo do diferente (a heterofobia) e os estereótipos criam uma forma  de violência simbólica que se concretiza na violência física contida nas  diversas formas: espancamento e morte de homossexuais, extermínio de  crianças de rua (Candelária), extermínio de mendigos da Praça da Sé, em  São Paulo, as mortes entre membros de torcidas de times de futebol, as  mortes entre membros de gangues organizadas, o fundamentalismo religioso  islâmico, judaico e cristão, o fundamentalismo político  norte-americano, a xenofobia de alguns países europeus, etc.
         O etnocentrismo, a racização repressiva da assimilação dos outros a si  mesmo, todas essas formas de aculturação violenta tornam muito difícil o  corolário de um horizonte aberto, capaz de conter outras verdades, ou a  idéia de verdade-processo, em que não há uma única resposta certa para a  realidade.
         É de se esperar que o moderno diálogo intercultural e inter-religioso,  com sua abertura para os argumentos da tolerância discursiva, seja o  caminho mais curto para a INCLUSIVIDADE. Del Vecchio vê no direito um  instrumento para a aceitação do outro: 
       “O Direito, em especial, implica sempre o reconhecimento expresso da  pessoa do ‘outro’; é, por essência, ‘metaegoista’ e as instituições  políticas não são máquinas, ou instrumentos exclusivamente mecânicos das  coações impostas aos homens, que só devido a estas evitariam a  auto-exterminação da espécie: mas são antes produtos espontâneos do  espírito humano[12]”. 
         De alguma forma, sempre esteve presente a idéia de que a resposta para a  cultura da intolerância encontrava-se na alteridade, no olhar do outro,  onde está sempre a referência da nossa identidade[13]. Para Levinas,  “[...] o Outro não é o distante, o estranho, e muito menos o impessoal. O  Outro é universo epifânico e dialogal[14]”. Construímos a nossa  subjetividade porque existe o outro, faça ele parte do nosso grupo ou  não. Para Freire, “a subjetividade, portanto, não é interioridade, mas  um si construído a partir de fora, de outrem, pura defecção de um eu que  se perde a si mesmo[15]”. O olhar do outro estabelece a nossa  visibilidade, pode ser que ele às vezes nos desinstale, mas sempre nos  recupera de nós mesmos, dentro de “um jogo de possível captura  recíproca[16]”. Por outro lado, a escassez do outro, a sua desventura, o  seu sofrimento nos incomoda. Boff enfatiza de que
       “O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que  um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção,  de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, de  preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o  outro[17]”. 
         O caminho da diversidade na unidade, do pluralismo, da inclusividade,  parece ser a única resposta aceitável. Saber conviver com pontos de  vista discordantes - o embate das idéias - aprofunda ou derriba as  nossas certezas parciais, provisórias e precárias; isso só é possível  quando não nos submetemos ao germe da radicalização. 
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[1] Merleau-Ponty, apud Bonomi, p. 9.
[2] Weltanschaung.
[3] Carvalho, 1976, p. 49. 
[4] Id., p. 46. 
[5] Nietzsche apud Candido, p. 1.
[6] Apud Streck, p. 175.
[7] Apud Eagleton, p. 172.
[8] Rector, p. 93.
[9]  Para Deely: “Ser um signo é uma forma de prisão a um outro, ao  significado, o objeto que o signo não é mais que, todavia, representa e  substitui.” (p. 54).
[10] Pessoa , p. 64.
[11] Deely, p. 29.
[12] Vecchio, p. 314.
[13] Souza, 2002, p. 51.
[14] Levinas, cap. XVIII.
[15] Freire, p. 85.
[16]Souza, 2002, p. 51.
[17] Boff, p. 33.
BIBLIOGRAFIA
BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
BONOMI, Andrea. Fenomenologia e Estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 1974.CARVALHO, Irene Mello. Introdução à Psicologia das Relações Humanas. Rio de Janeiro: RGV, 1976.
DEELY, John. Semiótica Básica. São Paulo: Ática, 1990.
EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: UNESP., 1997.
PESSOA, Fernando. O Guardador de Rebanhos. Poemas. 7 ed., Rio Janeiro: 1995
RECTOR, Mônica; NEIVA, Eduardo. Comunicação na era da pós-Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1997.
SOUZA, Regina Maria. O olhar e esses anormais: notas um tanto desencontradas sobre o racismo em nós. Campinas: Educação e Sociedade n 79, CEDES, 2002.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica em Crise. Porto Alegre: Livraria e Editora do Advogado, 1999.
Ref. Eletrônica:
Candido. A Crise dos Paradigmas Modernos. 1995, p. 1. Disponível em:
. Acesso em 12 dez 2001.
Fonte: http://metafisicaemodernidade.blogspot.com
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Lisa Teixeira
http://muraldecristal.blogspot.com
Novembro / 2011
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